Jornalista revela suas impressões sobre “A Voz do Brasil”
Tão tradicionais quanto o badalar dos sinos, os acordes iniciais d’O Guarani que prenunciam A Voz do Brasil demarcam divisas espaciais e comportamentais. “Sete da noite em Brasília”, abertura feita pelos locutores desde 2003, uma variação da antiga “Em Brasília, 19 horas”, é mais do que a indicação de horário. Faz os motoristas das metrópoles desligar o rádio, ao passo que, na nacada rural brasileira e em cidades pequenas e médias sobretudo das regiões menos desenvolvidas economicamente, é a principal, quando não a única forma de seus moradores manterem-se informados do que se passa no Brasil. Assim como as igrejas que, fazendo do barulho dos sinos um instrumento de comunicação, podem ser acusadas de atrapalhar o sono alheio ou dar norte à vida de citadinos, A Voz do Brasil não escapa às repartições de um país de dimensões continentais.
Elas ficaram mais delimitadas agora, com a recente Medida Provisória 648/14, editada pela presidente Dilma Roussef, que flexibilizava a transmissão do programa durante o período da Copa do Mundo. A comissão mista do Congresso que analisou seu texto aprovou-a com uma diferença significativa em relação ao texto original: a flexibilização não se restringe à Copa, e as emissoras, exceto as educativas, poderão transmitir o programa entre 19h e 22h – desde que o plenário da Câmara e do Senado também a aprovem, fato que se desenha mais difícil, dada a tradicional resistência dos parlamentares à proposta. Desde os anos 90 se busca, sem sucesso, ou flexibilizar o horário de sua transmissão, ou eliminar-lhe a obrigatoriedade.
A ênfase em seu processo civilizador – levar informação às camadas desprovidas de acesso a ela por outros meios e veículos – é o substrato principal da argumentação contrária à qualquer mudança. Aqui, poder-se-ia argumentar que A Voz do Brasil é um programa chapa-branca, que serve à promoção pessoal de políticos, com pouca serventia prestada aos brasileiros; e com o acréscimo de ser um entulho autoritário da Era Vargas. Sobre a primeira proposição, infelizmente é verdade; mas é preciso admitir que, na última década, houve melhora na qualidade do noticiário. E se a história põe a origem d’A Voz do Brasil como a voz de um país autoritário, também fez dela um ventríloquo da democracia, posto que sua obrigatoriedade foi regulada pelo Código Brasileiro de Telecomunicações, promulgado em 1962, em plena vigência do interregno democrático de 1946-1964.
Todavia, as diferenças regionais significativas de um país continental na economia, na cultura e nos hábitos fixam necessidades diferentes aos cidadãos. Se o Brasil rural já era díspar em 1935, quando as ondas do rádio se ocuparam incipiente e compulsoriamnete do programa, a complexidade da sociedade urbano-industrial – ao qual o campo está interligado – impõe, agora, não somente o reconhecimento dessas diferenças, mas sua incorporação às políticas públicas. É um dos pressupostos da democracia. Tratar a todos como necessitados de informação estatal pelo rádio às 19h – e, portanto, tirando-lhes a opção de ouvir outros programas – é uma visão positivista (não confundir com positiva; é exatamente o contrário), mecânica, estática da sociedade brasileira.
Por extensão, o anacronismo reflete o desconhecimento das novas tecnologias do mundo digital que permitem às rádios oferecer novos produtos aos ouvintes. Muitas das emissoras – quase todas dos grandes centros – já dispõem de aplicativos, páginas na internet e, ainda em número reduzido, transmissão em operadoras de TV por assinatura; e, como a difusão d’A Voz do Brasil só é obrigatória pela frequência do rádio, outros programas são veiculados das 19h às 20h nessas outras plataformas.
Há outras críticas à medida provisória que, pelo sofisma nelas contido, merecem atenção. Uma delas aponta para o grande número de rádios existente no Brasil como empecilho à fiscalização do programa em horários diversos; outra condena a possibilidade de as emissoras veicularem anúncios no horário das 19h, momento de saída do trabalho, em que muitas pessoas, presas no trânsito, tornam-se ouvintes em potencial. A suposta dificuldade de fiscalizar a transmissão do programa numa faixa de três horas não pode ser argumento porque foge ao mérito do problema e, ainda mais grave, antevê incompetência dos poderes públicos para exercer seu papel. O raciocínio é o seguinte: não importa que A Voz do Brasil seja boa ou perniciosa às 19h – o problema é que o Estado é incapaz de exercer fiscalização. Quanto ao interesse comercial, não há qualquer problema nisso: as emissoras comerciais têm sua sobrevivência garantida pela publicidade, e quanto mais saudáveis financeiramente elas forem, melhor para o mercado de comunicação no Brasil. Um público-alvo numeroso e bem-definido é bom tanto para as emissoras quanto para anunciantes e agências de publicidade. Se podem divulgar anúncio em todos os horários, por que não às 19h?
A flexibilização proposta pela medida provisória, se aprovada, será um grande avanço diante da cultura de intransigência à mudança, sem a qual seria até possível imaginar novas alternativas ao formato de uma hora de duração. Como reparti-la em pílulas, para veiculação ao longo da grade das emissoras. Fique-se com o que se pode no momento – que já será um marco nos noventa e dois anos de rádio no Brasil.
Bruno Filippo -Jornalista, sociólogo
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